BRASÍLIA - Promessa de campanha da presidente Dilma Rousseff, o pacote de combate à violência que será enviado ao Congresso nas próximas semanas, segundo estimativa do governo, pretende federalizar crimes cometidos por grupos de extermínio. Na prática, esses delitos passariam a ser investigados pela Polícia Federal e processados na Justiça Federal. O grupo interministerial que elabora o texto da Proposta de Emenda à Constituição, a chamada PEC da Segurança, trabalha para conceituar bem os chamados “esquadrões da morte” na tentativa de evitar brechas que atrapalhem a aplicação da lei.
O principal objetivo da proposta, ao tirar da órbita estadual a apuração e o julgamento desse tipo de crime, é evitar a impunidade, já que muitos membros de grupos de extermínio são agentes públicos, tais como policiais, com potencial para influenciar o rumo de investigações e manobrar integrantes de tribunais de juris. Na esfera federal, acredita-se que essa pressão é menor. Embora exista na legislação brasileira, desde 2004, a possibilidade de federalização de crimes, o governo considera as regras atuais muito amarradas. Somente três casos, até hoje, foram deslocados para os órgãos federais.
Apesar das boas intenções em torno da medida, há vozes contrárias, sobretudo entre os profissionais da área de segurança e justiça que atuam no âmbito estadual, tais como promotores, policiais e magistrados.
— Acreditar que a intervenção federal é mais eficaz que a estadual pode fazer algum sentido em determinadas partes do país, mas não é a regra. Há estados com estruturas mais preparadas, inclusive porque atuam cotidianamente nesse tipo de crime — diz João Ricardo Costa, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). — Essa é uma medida para justificar a inação dos governos em adotar as políticas públicas de segurança. Esse caso da Lava Jato é um exemplo. Não estão pressionando o juiz, mesmo sendo um juiz federal?
Débora Maria da Silva, fundadora e coordenadora do Movimento Mães de Maio, também recorre ao juiz Sérgio Moro, que coordena a operação Lava Jato, mas para defender outro ponto de vista. Segundo ela, o mesmo empenho dos agentes federais na investigação de corrupção na Petrobras deveria se repetir nos casos de extermínio.
— Por que não usar a tecnologia e o esforço que se usa para combater a lavagem de dinheiro na investigação de mortes, de vidas que foram tiradas por grupos militares e paramilitares em São Paulo? — questiona Débora.
O filho de Débora, de 29 anos, está entre as mais de 500 pessoas assassinadas em apenas dez dias do mês de maio de 2006 em São Paulo, em uma ação de terror atribuída à maior facção criminosa do país. No entanto, há indícios fortes de execuções não relacionadas ao grupo que costuma agir de dentro dos presídios. Com isso, Débora e parentes de outras vítimas protocolaram, em 2010, um pedido para federalizar o caso, mas o procurador-geral da República (PGR), único que pode solicitar a transferência de competência, não chegou a fazer o pedido.
— Foi o Gurgel, agora o Janot. E nada. Como pode inquéritos de praticamente 600 mortes serem arquivados simplesmente? Sabemos que muitas mortes foram praticadas pela Polícia Militar, gente da ativa e também gente que já se aposentou. Se não for a PF, não teremos a apuração da morte dos nossos jovens — reclama Débora.
No Brasil, apenas cinco solicitações de federalização de crime chegaram ao STJ -- Corte que tem a prerrogativa de decidir os pedidos. Três foram aceitos. O primeiro caso retirado da esfera estadual, em 2010, foi a execução, a tiros, do advogado e defensor dos direitos humanos Manoel Mattos, que denunciava a atuação de grupos de extermínio nos estados de Pernambuco e Paraíba.
Depois, em 2013, a morte de moradores de rua em Goiânia associada a grupos de extermínio formado por policiais militares subiu para o âmbito federal. E, mais recentemente, a Justiça aceitou a federalização do assassinato do promotor de justiça Thiago Faria Soares, em Recife.
Para que o PGR solicite e o STJ concorde em federalizar um crime, nas regras atuais, é preciso que seja ligado a uma grave violação de direitos humanos, incompatível com os tratados internacionais assinados pelo Brasil e que haja descuido ou morosidade dos agentes públicos estaduais na responsabilização dos culpados. Para se ter ideia, com toda a repercussão da morte da missionária Dorothy Stang, em 2005, o pedido do PGR à época, para que o caso fosse federalizado, não surtiu efeito. O STJ negou.
Outros pontos que constarão da PEC da Segurança vão definir melhor as competências de cada ente da Federação, colocando uma maior responsabilização na União no que diz respeito a coordenar ações de combate à violência. Um grande cuidado que se tem tomado, na elaboração do texto da proposta, é não ultrapassar os limites de independência e autonomia de estados e municípios, sob risco de a PEC ser barrada pelo Congresso. O governo federal quer repetir a operação de segurança feita na época da Copa do Mundo, inclusive construindo em todas as unidades da Federação centros de comado e controle, tais quais foram usados nas cidades que sediaram o evento.
Para tentar reverter a agenda negativa que vem marcando o governo nesse início do segundo mandato de Dilma, a ideia é que o pacote de combate à violência chegue ao Congresso simultaneamente ao conjunto de medidas de combate à corrupção -- outra promessa da campanha da presidente. O problema é a demora no envio dessas propostas. Dilma chegou a prever a remessa da PEC da Segurança ao Legislativo em agosto passado. Mas a lentidão na elaboração das regras deixa dúvidas se a última previsão do governo, que é encaminhar o projeto até o fim de fevereiro ou início de março, será mesmo cumprida.
Hoje, para um crime ser federalizado, é preciso que haja grave violação de direitos humanos, incompatível com tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte. É verificado ainda, nos casos concretos, se há morosidade ou descuido por parte das autoridades estaduais na apuração ou responsabilização do caso.
Só o PGR pode solicitar ao STJ a federalização de um crime, em qualquer fase do inquérito e processo. Se for aceito o pedido, chamado tecnicamente de incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, o caso sai das mãos da polícia civil e da Justiça local para a competência da Polícia e Justiça federais.
Pela proposta, qualquer crime cometido por grupos de extermínio passa a ser de competência federal, tanto na investigação quanto no julgamento. A ideia é deixar isso previsto na Constituição para que não seja necessário, além de uma lei avulsa, mudar normativas das instituições envolvidas. Espera-se que, com a proposta, os homicídios diminuam no país. Hoje a taxa é de 29 por 100 mil habitantes, a maior desde 1980.//Agencia do Globo