
Maio de 2006, o Jornal Impresso “Em Tempo Parintins” na época dirigido pelo saudoso Tadeu de Souza e teve como editores chefes os jornalistas Floriano Lins e Peta Cid destinava duas páginas de cultura sobre o Festival. Uma para Caprichoso e a outra para o Garantido. Como eu era torcedor fanático do Vermelho e Branco, a jornalista Peta Cid sugeriu que fizesse matérias do Caprichoso.
Não lembro quantas reportagens fiz para o Azul e Branco, mas não durei muito, depois de uma entrevista com o historiador Simão Assayag. Mas essa é outra história. Eu estava na editoria de polícia e esporte. Para aonde qualquer comunicador que se preze deve passar.
Peta e Floriano colocavam a mim e aos demais colegas reversando nas páginas de cultura. Sempre acreditaram no potencial de matéria de cultura. Mais do que isso, queriam explorar os personagens da Baixa de São José e da Francesa. Independente de estar atuando ou não nas agremiações, devíamos fazê-los aparecer, pois ajudaram a construir os 100 anos da brincadeira de bois e quadrilhas na Ilha.
Numa manhã, querendo apressar o serviço, fui pegar cedo a pauta e encontro o Tadeu de Souza no corredor e o Carlos Paulain, compositor do Caprichoso e pai dos cantores Israel Paulain e Júnior Paulain. Carlos sempre aparecia na redação para conversar com Tadeu. Eram amigos de brigas intermináveis. Carlos Paulain, o pandego, e o Tadeu, o Coroinha.
Comuniquei que já tinha entregue minhas páginas de polícia e de esporte e já vinha pra casa. Na época eu era operador sonoplasta na Rádio Alvorada AM. Foi quando Tadeu e Paulain olharam-se. E Tadeu disse: “Tu vais fazer uma entrevista com o compositor Emerson Maia. Vou falar com o Floriano e a Peta”.
Carlos Paulain me advertiu: “Ele é o ministro da educação de ignorante. Se tu conseguir ganhar ele, ganha uma boa fonte”.
Era uma quarta-feira e a coluna sairia na edição de sábado. Prontamente fiz uns rascunhos e sair em busca da entrevista com o poeta.
Recordei quando eu e meu irmão gêmeo Jota Lima estudávamos no Jardim de Infância Pequenino de Nazaré, no Bairro de Nazaré por volta de 1988/89. E na hora do recreio ficávamos a cantar toadas. “Rio Amazonas Teu Cenário é uma Beleza” não faltava.
Pensei: Vou conhecer o cara que fez a letra da toada.
Para minha frustração fui várias vezes na Marina do Emerson e na residência dele no Bairro de Santa Clara. Só vinha a empregada dizer que ele não estava. Ou na Marina um dos ajudantes diziam: Ele está no escritório, mas mandou dizer que não vai atender, pois está muito ocupado.
O meu deadline para a entrega do trabalho estava furado naquela semana. No jornalismo é o prazo final para o fechamento do jornal ou de uma edição ou reportagem. Pedi desculpas e fiquei muito desapontado por não ter conseguido. Assim foi por quase três semanas. Nesse tempo fui ouvindo amigos e compositores que conheciam o Emerson. Já estava até decidido a fazer uma entrevista perfil, sem a fala dele.
Me informaram que Emerson Maia gostava de frequentar o famoso “Bar do Sapatinho”, localizado no Centro da Cidade, próximo a Caixa D´água do SAAE. Não tive dúvidas. Fiquei um fim de semana na espreita do seu Emerson Maia.
Os irmãos Junior Maia e Emerson Maia
E não demorou a sexta-feira estava Emerson começando a degustar a primeira gelada. Aproximei dele, me identifiquei, pedi desculpa pelo transtorno de invadir a privacidade dele. Mas implorei para que ele abrisse na agenda uma hora na semana. Ele me olhou, disse que sabia quem eu era, mas da Rádio Alvorada. Pois ele escutava muito o programa “Ciranda da Cidade” que o Carlos Paulain e o Tadeu faziam. Eu aproveitei, e disse “foi o Carlos Paulain quem sugeriu. E me avisou que o senhor é o Ministro da Educação”.
Nessa hora, Emerson arregalou os olhos e tascou: “Esse patife disse isso? Ele é meu compadre você sabia disso? Pois eu vou lhe conceder a entrevista, vai amanhã lá na Marina. Umas 9h ou 10, quando despacho o pessoal que está saindo de voadeira. Pode ir”.
Sábado cedo estava na casa do Emerson Maia. Fiquei por um tempo observando seu Emerson atendendo e despachando os clientes. Nove horas o lembrei. “Esperai aí bicho, eu te disse 9h ou 10h. Então estou no tempo certo”.
Eu nem retruquei. Dez horas ele me convidou para adentrar o pequeno escritório. Conversamos mais meia hora. Emerson criticou bastantes acadêmicos que sempre o entrevistavam para trabalhos sobre o Festival, música e sobre a Toada “Lamento de Raça”, mas nunca mais voltavam para agradecer.
Levantou e disse: “Vamos até meu espaço privilegiado”. Adentramos ao quintal da casa dele e na varanda uma rede. Ele sentou, sem camisa, começou a falar: “Poder perguntar”.
Eu meio sem jeito: “Seu Emerson, é que a reportagem é para o Jornal Impresso e queria uma foto sua, nessa rede mesmo. Mas o senhor de camisa”. Ele falou uns dez palavrões. Entrou na casa. Pensei que ele fosse me expulsar da casa. Nada. Voltou de camisa encarnada e com um violão. Mas avisou: “Vou falar tudo, mas se tu não colocar, tu nunca mais aparece aqui”.
Desabafo e Críticas
Enfim, começamos a entrevista. Com perguntas abertas ele desenvolver os temas. Emerson Maia criticou a gestão dos presidentes Antônio Andrade, José Walmir e Vicente de Matos, que segundo ele apesar dos títulos trouxeram enormes divisões no Garantido e ficaram devendo execução para artistas e compositores.
Disse que criou-se “panelinhas” dentro do Garantido e isso o afastou do Garrote. Citou o jornalista Fred Góes como grande compadre, mas também não o poupou de criticas. Chamou de farsa a “Comissão de Artes” que estaria acabando com o Festival e a inspiração dos compositores, pois queriam direcionar as letras. Nominou na época com críticas Chico Cardoso, Fred, Júnior de Souza, Telo Pinto que faziam parte da Comissão. “Eu não coloco toada minha para ser avaliada por aqueles analfabetos de música”, disparou.
Acusou que uma quadrilha se instalou no Festival, no seio de Caprichoso e Garantido e por isso a festa estava se afogando. Pois o povo humilde ficava fora do evento. Comentou sobre direitos autorais, de arena e a desvalorização dos compositores e artistas de galpão. Enalteceu Paulinho Faria, Tadeu Garcia, Chico da Silva, Braulino, Ambrósio, seu Jair Mendes. Lembrou que a luta pela preservação da Amazônia, dos animais, dos caboclos, dos índios, é um responsabilidade que deve ser permanente. E não apenas moda para discurso bonito.
Reclamou que a toada “Lamento de Raça” era sempre cantada e pesquisada, mas pouco colocada em prática. “Esse rio aqui purrudo é minha maior inspiração”, apontando para o Rio Amazonas.
No meio da entrevista, perguntei sobre a importância do seu Antônio Maia e dona Lady Maia para o Garantido. E o sentimento pela toada “Sentei Junto ao Pé da Roseira”. Nesse momento observei um homem “purrudão” e cheio de rancor pelas mazelas no Garantido e o Festival, cair aos prantos. Ficou emocionado, chorou, cantou a toada.
Revelou-me que na letra da toada “Parintina” do ano de 2000, declara todo amor pela Ilha de Tupinambarana e faz alusão não apenas ao Garantido e sim Caprichoso também, na parte “Espelho da força, da raça, nobreza, de um povo que ama o SEU BOI de Paixão”.
A entrevista ficou cheia de melancolia com a nostalgia relembrada pelo poeta. De uma época na qual ele era o levantador de toadas e ditava a batucada. Falou do mestre Lindolfo Monteverde e do legado e importância de sempre valorizar a memória do criador do Garantido.
Criticou as políticas públicas para a cultura e lamentou que Caprichoso e Garantido estivessem tornando-se elitizado e perdendo a identidade de boizão.
Finalizou tocando “Pura Harmonia” foi sensacional.
Quando paramos já estava passando da hora do almoço. Ele me convidou para comer algo e tomar uma bem gelada. Quando desliguei meu gravador e parei de anotar no meu caderninho, ele me olhou. Abraçou e disse: “Bicho, você me deixou emocionado. Você não me conhece. Mas eu me emociono muito fácil. Quando você escolheu as palavras para falar do meu pai e da mamãe, tu me pegou de jeito. Meu filho a minha casa e meu coração estarão sempre aberto para você!”
Ouvir aquelas palavras me deixou pávulo. Queria chorar e gritar de alegria. Mas mantive a calma. Sair com uma adrenalina total.
Pena que quase três horas de entrevista teve de ser bastante editada. Mas o “grosso” permaneceu. Apesar da reluta, lembro eu, que o Tadeu fez sobre Emerson ter citado pessoas. Mas caso tivesse bronca, ele disse que assumiria. Na terça-feira quando saiu o Jornal, eu levei para ele ler. Chorou de novo. Adorou a foto dele numa rede bem cabocla.
Esse meu gravador tinha tantas entrevistas boas além do Emerson, com seu Badú, seu Osmar Faria, o grande Porrotó. Mas confiar apenas na tecnologia sem arquivar em outros meios é ruim. Enfim.
Daquela entrevista em diante, seu Emerson Maia cumpriu a palavra. Onde me encontrava me chamava de “filho” e me dava um forte abraço.
Tomamos várias vezes uma cervejinha e o tira gosto castanha do pará e tucumã. Certa vez levei a cantora Márcia Siqueira (até a Marina dele), que tinha um grande projeto musical e incluía algumas toadas como “Flor de Tucumã” de Emerson Maia. Foi uma tarde maravilhosa, que daria outra crônica. Eu privilegiado de vê e ouvir Emerson Maia e Márcia Siqueira, naquela Marina e de fundo o Rio Amazonas.
Outra vez com o jornalista Ednilson Maciel passamos uma tarde, noite e madrugada a dentro ouvindo Emerson Maia. Uma aula de história de vida, do festival e de luta que nenhum banco de universidade proporciona. Ele até revelou que certa fez criava uma onça e um dia ela abocanhou as partes íntimas dele. Depois desse fato Emerson teve de doar a inquilina. Lagrimejava de felicidade ao falar dos filhos. Contou o contexto do "Escamoteado a morena”, do Rio Amazonas.
Sempre fui orgulhoso de ter conquistado aquele “Coração Grande” do melhor compositor de toadas do Amazonas. O poeta da Amazônia. Também ralhava quando não concordava com algum notícia minha no jornal.
Em 2007 quando ele voltou a colocar música no Vermelho e Branco com a toada “Acelerou meu coração” foi de arrepiar.
Em 2010, me ligou para mostrar a toada “Rouxinol”, uma sátira ao fato do grande cantor David Assayag deixar o Garantido para seguir o Caprichoso. Eu tocava direto no meu programa de Rádio do bumbá na época. Era o xaveco do Festival. Pois Emerson e David protagonizaram grandes shows no programa #toadas do Portal BNC Amazonas, do jornalista parintinense Neuton Corrêa.
“A Coisa Mais Linda do Mundo” ou “Tampa da Chaleira” de 2018, mostrou que o Poeta estava muito afiado ainda. Além, claro, das obras dele no Boi Caprichoso.
Certa fez, quando infelizmente faleceu o senhor Xisto Pereira, (um dos organizadores do Festival de Parintins ao lado de Lucinor Barros, Raimundo Muniz e outros jovens da JAC em 1965), a TV Alvorada queria entrevistar Emerson Maia. Devido ao jeito reservado dele, o colega Altair Costa acionou-me e fui “abrir” caminho para a entrevista. Não queria falar, mas eu disse: “Seu amigo da época do The Glad Boys, merece”. Ele muito emocionado então relatou tudo sobre Xisto Pereira.
Apareceu a toada “Geração Garantido”, em 2011, do compositor Emerson Faria Maia, filho de Emerson, foi uma grata revelação ao Garantido. Virou hino. E aja mais o poeta ficar emocionado.
Ao odontólogo Antônio Maia Júnior, irmão de Emerson, meus pêsames; assim como ao seu Erivaldo Maia, dona Ednea Maia e a todos os filhos e demais familiares e principalmente dona Lady Maia.
Emerson Maia partiu na madrugada de 14 de Agosto deste 2020. Siga a Luz, pois você sempre foi luz, estrela, coração e o clamor do nosso povo, da nossa gente e do nosso folclore. Tomar uma cachaça para não deixar as lágrimas rolarem em vão, pela tua partida. Mas a emoção é mais forte. Obrigado por desde aquela primeira entrevista me adicionar na tua vasta agenda de colegas e amigos e me chamar de “filho”.
Texto: Hudson Lima
(92) 991542015