Sopro Terapêutico

“As doenças vêm das maldades, ambições, conflitos e perversidades produzidas pelos humanos. Ferir a floresta, as plantas, os frutos, os rios, o ar, os bichos é violentar a nós... A natureza somos todos nós. Ela dá a vida, mas também a morte”

Sopro Terapêutico Notícia do dia 05/04/2024

Aos 7 de abril de 1948, a Organização Mundial de Saúde decretara a data Dia Mundial da Saúde. O propósito da OMS focava sensibilizar a população mundial à construção de caminhos com sadia qualidade de vida, haja vista, constatações apontavam ameaças por diferentes fatores desenvolvimentistas à saúde global. Sem dúvidas, a presente data, se oferece como brecha militante ao enfrentamento do memoricídio cultural e a possibilidades de diálogos entre sabedoria ancestral e conhecimento técnico acadêmico.

 

Vislumbramos também nas intenções da data provocações relativas a uma das fontes básicas da saúde: a alimentação. Segundo as contribuições de Hipócrates, o Pai da Medicina, não há como dissociar o ser humano biológico e o ser humano sociocultural: embora, aparentemente, categorias distintas, ambas mantêm interdependências relativas à causa/efeito; fato e consequências. Os argumentos encontram referências em “Alimentação, Sociedade e Cultura”, de Jesús Contreras e Mabel Garcia: “O vínculo histórico entre alimentação e saúde, unido ao surgimento cada vez mais recorrente dos temas alimentares nas agendas políticas dos anos 1990, fez com que aumentasse a preocupação com a dieta e, em geral, com os comportamentos alimentares”.

 

Por essa trilha, Saúde/Alimentação interligam-se para além do fisiológico alcançando dimensões sociais, políticas e culturais: nem tudo o que jogamos na boca e aparentemente camufla a fome pode ser considerado alimento provedor de saúde. O alcance da saúde - patrimônio universal-, encontra-se necessariamente no bem-estar físico, mental e social através de acessos dignos à alimentação, moradia, saneamento básico, trabalho, renda, educação, transporte, lazer e bens de serviços essenciais, referendados nas Leis 8.080 e 8142/1990, do Sistema Único de Saúde/SUS.

 

Na sequência, vale comparar os hábitos alimentares e modos de vida das comunidades tradicionais com os estabelecidos/determinados na atualidade: as populações antigas usufruíam de qualidade de vida compatível às necessidades biológicas e culturais; raramente adoeciam; a morte era um processo natural, após cumprirem o ciclo existencial. Conforme a dinâmica de sobrevivência, consumiam a própria produção através de jeitos simples e naturais. São resíduos de memórias trazidos na oralidade por octogenários sobreviventes.

 

Em arquivos testemunhais da Benzedeira, Nilce Aporcino Campos, (in memoriam) amazonense das terras baixas, há um comentário instigante: “Antigamente, não tinha médico... Nós se curava com os Pajés, com os Sacaca através da reza, dos banhos, das puxações, das plantas, da terra, da água, da alimentação e de tudo que nós tinha de bom. E nós tinha saúde”. Na mesma direção, Pajé Sateré-Mawé, Jurismar, aponta com singularidade a origem das doenças e da cura: “As doenças vêm das maldades, ambições, conflitos e perversidades produzidas pelos humanos entre si e entre as outras espécies - das formigas às castanheiras. Ferir a floresta, as plantas, os frutos, os rios, o ar, os bichos é violentar a nós... A natureza somos todos nós. Ela dá a vida, mas também a morte”. O Pajé ainda propõe um retorno às práticas das antigas comunidades: “Todos se cuidavam como família e nada faltava. Só desse jeito, parentes, o mundo vai ter saúde e vida com fartura”. A referência tem como base o período anterior à chegada do colonizador, quando aquelas comunidades viviam num diálogo harmonioso com a terra e seu conjunto, com a produção e consumo de alimentos saudáveis.

 

O ideário trazido pela Sabedoria Ancestral sofrera perdas devastadoras após a segunda guerra mundial, quando o bloco vencedor impôs aos países dependentes a tal “revolução verde”: mecanização da agricultura com impactos destrutivos à Mãe Terra, às práticas orgânico comunitárias, além da subestimação das dinâmicas tradicionais de cultivo e consumo de alimentos. Os reminiscentes das sociedades tradicionais, hoje (em maioria), movidos por circunstâncias, seduzidos por fantasias urbanísticas/urbanoides ocupam espremidos espaços em periferias, sem quaisquer perspectivas de relações solidárias com a “Casa Comum”: optam por comidas e bebidas industrializadas, por importados sem qualquer percepção aos prejuízos à vida.

 

Posto isso, o que brota do Ventre Sagrado vira mercadoria. São enlatados, ensacolados, engarrafados sob nocivos conservantes que garantem lucratividade de supermercados, exploração de desvalidos e adoecimentos incontroláveis. Além da produção desenfreada de resíduos sólidos contaminando mais e mais a Fonte Sagrada da Vida. Saberes tradicionais são trocados por insumos tecnicistas, por mecanizações agrotóxicas com desfecho no envenenamento do cardápio humano e no descontrole de adoecimentos - muitos indiagnosticáveis. O próprio sistema declina-se limitado a acolher e atender de forma digna e equitativa o volume de pacientes nas UBSs e centros de saúde.

 

Considere-se ainda: o processo de produção, distribuição e consumo de alimentos não se desenvolve através de relações pacíficas com a agricultura familiar. O agronegócio é quem dita as regras do direito a modos e uso sob aval de governos fascistas.

 

De resto, apesar da insistente repetição nos teçumes, aproveitamos a brecha do Dia Mundial da Saúde e teimosiamos na “Pedagogia da Indignação”, terapia oferecida pelo Educador Paulo Freire, quando modos de vida necessários à Saúde Universal são violentados: “Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga, porque, histórico, vivo a História como tempo de possibilidade não de determinação.”

 

É mais um sopro contra o memoricídio cultural, contra a omissão às garantias à saúde, “direito de todos, dever do Estado”.

 

Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Floresta Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

 

Por Fátima Guedes