Contradições escancaram-se quando problematizamos a dita democracia sob mascaramento de dinâmicas políticas de direitos e de participação igualitária. Meia palavra basta a um bom entendedor! A conjuntura se arrasta entre cercas de jurubeba: acima, no centro e do lado direito grande número de puxa-sacos subservientes; do lado contrário, um grupo limitado de puxa-carroças construindo esperançares.
Os conceitos - puxa-saco e puxa-carroça - proporcionam um mergulho crítico na filosofia popular: brecha ímpar de leitura do real-concreto para um entendimento claro em prol do autoconhecimento e autolibertação. Por esse viés, reafirma o Poeta Manuel Bandeira: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros. Vinha da boca do povo, na língua errada do povo; língua certa do povo”. Enfim, são concepções populares manifestadas na fala livre, descontraída, acessível e transgressora.
O modelo político vigente se sustenta sob rituais de subserviências e exploração das massas analfabetizadas, vulnerabilizadas em garantias e direitos sociais. Eis a regra: “quem não puxa-saco, puxa carroça”. A oficialização do princípio sob ditames puxassacômanos tornou-se obrigatório como garantia de privilégios institucionalistas e de dominação da coisa pública.
Contrapondo-se aos puxa-sacos, em número reduzido, teimosiam os puxa-carroças conduzindo a vida e a história como sabem, podem e como bem entendem. Haja vista a diversificação de valores, de princípios e opções, as duas categorias ocupam espaços e polos diferenciados. Ilusoriamente os de cima impuseram o separatismo desqualificando os de baixo por manterem resistência às opressões, às seduções sistêmicas. Portanto, sem a produtividade autônoma dos de baixo, os puxassacoístas não se garantem. A vida em plenitude brota do chão.
A conquista da liberdade de pensamento e escolha sobre puxar-sacos e/ou puxar-carroças depende das adubações armazenadas nas consciências, tanto de um lado quanto do outro: “título de primogenitura” ou o escasso “prato de lentilhas” (Gênesis 27:19-30). A ausência de autonomia, de leitura problematizadora, o entorpecimento das mentes forja a maioria do rebanho optar pelo mísero prato de lentilhas configurado em cargos, funções, titularidades e por último em cesta básica. A concorrência à puxassacomania não consegue ver/ler além das esmolas, das migalhas dos favores, tampouco exercitar a fonte do paladar na autoconsciência, na autoeducação, na autolibertação para um agir autônomo, transformador para além da língua. Ou, quando vê/lê, utiliza-se do joguete para nutrir intenções golpistas de domínio sobre o público.
Na parte de cima, disputas por privilégios cujos reflexos fortalecem ainda mais o império da mediocridade assim como o mercado de caniços agitados por ventos devastadores de respeito à dignidade. Revestidos de uma palidez viciosa (sequela das migalhas e restos ingeridos nas funções gabinetistas) em “deselegância discreta” e “exagerando nos detalhes da miséria” adotam postura autoritária, mas totalmente vulneráveis aos mais variados tipos de corrupção.
É comum ainda entre os de cima a livre concorrência. Como há pouco saco para muito puxador, vence o mais habilidoso na arte de dizer AMÉM! O mais estratégico em fuxicologia; e quem sustentar por mais tempo o peso e o desconforto do saco disputado.
Já os puxa-carroças caminham contra o vento sem lenço e sem documento. São bem mais descontraídos. Na dialogicidade entre os pares descobrem que são senhores e senhoras de si e só a eles e a elas servem; ignoram institucionalismos, dogmatismos religiosistas e se fazem vanguardas da própria vida, da própria liberdade. Enquanto os de cima calejam as mãos alisando sacos velhos, fedidos, asquerosos, os puxa-carroças trazem as duras marcas do trabalho, das lutas populares, das conquistas por autonomia e o direito de se fazerem felizes sem donos ou capatazes.
Sobre puxa-carroças: no interior da Amazônia, segunda metade dos anos 1980, quando não se desviava dinheiro público em fundo partidário, grupos legitimamente de esquerda, de oposição, livres de caciques ou cabrestos, durante campanhas eleitorais, mobilizam-se através de carrocinhas, impressos e megafones. Camaradas e Companheirxs, em comunhão, engrossavam os coletivos, entoavam canções militantes, libertárias... Agitavam bandeiras vermelhas com autonomia e sem corrupções. A comunidade participava livremente contribuindo com rifas, sorteios, feijoadas e mais. Não havia puxa-sacos.
Aos de baixo reafirma-se o exercício plena da liberdade, conforme necessidades e circunstâncias; exceto prostituírem-se em bordéis públicos, privados e/ou negociar o direito sagrado de afirmar o sim e o não! Diga-se ainda: a diferença entre as duas categorias é como noite/dia; luz/trevas; vida/morte; céu/inferno; deus/diabo... Porém, em natureza e essência, do pó vieram ao pó voltarão.
Puxar saco e/ou puxar carroça é opção.
Por Fátima Guedes
Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora Popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.