
Nosso tempo físico avança, o cenário sócio político ambiental que se descortina já embaça nossa visão septuagenária e eis a pergunta: que sementes deixamos para as futuras gerações, em grande maioria, contaminadas por uma ética consumista, determinista; viciadas num sistema de “comunicação” manipulado por códigos virtuais, tecnicistas?... Que sopros ainda conseguem alcançá-las, contagiá-las... até quem sabe, atiçar a fogueira interior e estabelecer possíveis conexões com as sabedorias ancestrais – a legítima fonte de todo o conhecimento oficialmente reconhecido como ciência?
São inquietações contínuas quando sintonizamos na Mandala Lunar* os recados da Mãe Terra “[...] conscientes de que somos parte dela e de que dependemos da vida de muitos seres para existir e experienciar esta breve passagem-vida”. A mesma sintonia nos leva a diálogos com as fases da lua, com o movimento do sol, com a dança das estrelas, das águas; com o uivo do vento sobre as folhagens, com o ritmo dos seres da floresta e diversidades... A sintonia também se faz vira--ser perene no acalanto das chuvas para com as florestas, campos, várzeas, terras-firmes em situações de autodefesa às ameaças e agressões sequenciais.
As percepções em referência fluem a princípio de nossa busca incessante por leitura crítica, por autoconhecimento, autoconsciência, autorresponsabilidade, autoeducação cultivadas em nossos compromissos militantes durante uma vida toda de dedicação e interatividade com Sábias Anciãs sobre suas relações com a Teia Cósmica*. Em originalidade são sementes sutis, até mesmo indefinidas, configuradas em sopros, em ecos de memórias sob contribuições ímpares na reinvenção de mundos dignos e possíveis para todas as formas de vida que se abrigam no Ventre Sagrado Universal.
Essa trilha de memórias nos instigou remar ainda mais, em 2021, quando o minúsculo e invisível vírus da covid 19 revelou seu poder e atingiu o Planeta, comprovando as limitações da racionalidade sistêmica, assim como, a impotência da ciência cartesiana para uma justa, imediata e eficaz intervenção. Naquele período, o Amazonas, segundo dados da Fundação de Vigilância em Saúde, o vírus produziu 19.237 óbitos e levou mais de 96% de acometidos a leitos de UTI da rede pública.
A catástrofe viral no Estado despertou atenções das populações e comunidades nativas - herdeiras de modos de vida singulares - que conseguiram amenizar a agressividade do vírus através de jeitos, fórmulas naturais, originárias de prevenção e fortalecimento da imunidade. Impossível esquecer a andiroba*, copaíba*, banha de boto*, o leite de amapá*, o umbigo do ouriço de castanha-da-Amazônia*, o jatobá*, além de banhos repelentes à base de cipó-alho*, sacaca*, mucuracaá* entre outras riquezas. Os efeitos imunizantes desses elementais reduziram o caos entre as populações do campo, florestas, águas produzindo um discreto silêncio sobre o dogmatismo da ciência cartesiana; o epistemicídio mercadológico recolheu-se sem quaisquer críticas discriminatórias às saídas de emergência e até curativas dos antigos saberes.
Os chamados de atenção da Mãe Universal, através da covid-19, provocaram comunidades, grupos sociais diversos e até mesmo profissionais do sistema hospitalocêntrico, sensíveis à causa, acolher discretamente antigas sabedorias, jeitos naturais de prevenção e intervenção ao vírus a partir de dinâmicas relacionadas a cuidados ancestrais de saúde.
“Somos um Círculo...”*
Durante o processo de recolhimento, movimentos sociais engajados desbravaram remansos e correntezas estruturais/estruturantes, embarcaram na “canoa da cura”* em busca de iluminações e respectivas comprovações sobre dinâmicas educativas de relações solidárias com os elementais básicos da vida.
As estratégicas remadas levaram a Teia de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta* ao encontro dos Círculos Sagrados Femininos*, tecidos por Mirella Faur em suas buscas por respostas curativas universais: “Durante uma crise existencial profunda, em 1991, fiz uma peregrinação aos lugares Sagrados da Grã-Bretanha e lá, no caminho processional de Tor e no Poço Sagrado de Glastonbury, antiga Avalon, ouvi a voz da Deusa ecoando em meu coração, respondendo as minhas dúvidas e angústias e me chamando de volta à Sua antiga senda [...] E a ti, que buscas me conhecer, eu digo: tua busca e teu anseio de nada te servirão sem o conhecimento do mistério de que, se aquilo o que procuras não encontrares dentro de ti mesmo, jamais o encontrarás fora de ti. Pois, vê, sempre estive contigo – desde o começo – e sou aquilo o que se alcança além do desejo”.
A viagem às tradições matrifocais trouxera descobertas e visões ímpares, a maioria abafadas em registros patriarcais/capitalistas. Resumindo: os Círculos Sagrados Femininos descrevem Práticas e Rituais para Resgate de Sabedorias Ancestrais e Espiritualidade Feminina* revelando a “Magia de Gaia: curar-se para curar a Terra”.
Assim, naquele mesmo ano, após perdas significativas e recolhimentos inquietantes necessários, a Teia, em sintonia com os princípios dos Círculos Sagrados Femininos, trazidos Por Faur, amplia os diálogos com parcerias e diversidades interessadas em fortalecer dinâmicas de autocura e cura de nossa Casa Comum, tece em Parintins/Am, os “Círculos Sagrados de Saúde”: estratégia mística socioeducativa de enfrentamento à iniquidades, a partir da construção de valores e princípios sintonizados com a promoção da saúde, da qualidade de vida digna e justa. O teçume dos Círculos Sagrados de Saúde fundamenta-se nos princípios da Educação Popular Freireana: diálogo, amorosidade, troca de saberes e conhecimentos, problematização da realidade, emancipação e construção de um projeto popular democrático sobre cuidados popular/tradicionais (ainda silenciados na Amazônia) para fins de resgate e reconhecimento nos protocolos oficiais de saúde.
Sobrepondo-se às limitações e impositivos piramidais, os Círculos Sagrados de Saúde teimosiam e arriscam-se em sensibilizar a comunidade, no sentido da inclusão de nossas sabedorias cabocas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS*, até então silenciadas; ao mesmo tempo, alcançar profissionais da saúde, gestores e agentes populares de cuidados, acessíveis à troca de conhecimentos técnico/acadêmicos e saberes popular/tradicionais em fortalecimento ao SUS (bandeira incessante de nossa luta).
Sob temáticas específicas de reverência à milenar tradição das Sábias Anciãs, a cada Lua Cheia (Plenilúnio) elege-se um Quintal Urbano* onde acontecem os Círculos Sagrados de Saúde com participação de públicos diversos... Além de momentos místicos, os Círculos concentram-se na troca de saberes/informações: ciência acadêmica e popular/tradicional resgatando-se memórias de Pajés, Parteiras, Benzedores, Erveiros, Pegadores de Desmintiduras* e outras categorias similares com foco na construção da “Teia da Vida - Saúde é todo mundo se ajudando a viver bem”.
Para além do horizonte
Apesar das limitações do tempo físico, os esperançares soprados através dos Círculos Sagrados de Saúde, no baixo-Amazonas, clareiam nossa visão empoeirada/cansada, resgatam a luz e ampliam nosso horizonte, quando Jaime Breilh* compartilha sábias pegadas: “Para responder a estas questões cruciais, um primeiro ponto de partida é consolidar um método de conhecimento baseado no pensamento crítico-intercultural-complexo, ou seja, uma ciência que seja intercultural, não somente em algumas ideias gerais, mas também na sua construção. Em outras palavras, uma ciência de todas as perspectivas, de todas as vozes e lugares de enunciação social”. (p.163)
É o eco do ontem matrifocal sobre o hoje embotado por sistemas mercadológicos. Aranhas, desafiando “questões cruciais” tecem e compartilham sonhos para novos tempos. Os Círculos Sagrados de Saúde, tecidos pela Teia de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta são sopros, resíduos de sabedorias em busca de acolhimento e cultivo.
E fica a utopia latejando em nossos corações, em nossos desejos de reinvenção da vida: que a força da Lua Cheia em algum lugar deste Planeta, em algum coração sensível, em algum canteiro da existência, potencialize a germinação de nossa semeadura para que a “Magia de Gaia nos cure e, assim, curemos a Terra.
Falares da Casa
Andiroba – Carapa guianensis
Castanha da Amazônia- Bertholletia excelsa
Cipó-alho - Mansoa alliacea
Copaíba - Copaifera langsdorffii
Jatobá - Hymenaea courbaril
Leite de amapá - Parahancornia fasciculata
Mucuracaá - Petiveria alliacea
Sacaca – Crotoncajucara Benth
A Canoa da Cura ninguém nunca rema só [...]. Tese Doutorado, Audirene Cordeiro. Dra. em Antropologia Social. UFAM. 2017.
BREILH, Jaime. Epidemiologia Crítica e a Saúde dos Povos - Ciência ética e corajosa em uma civilização doentia. HUCITEC Editora. São Paulo. 2024.
Mandala Lunar. Um Caminho de autoconhecimento. 2025. 10a Edição. Organizadoras: Ieve Holthausen e Naíla Andrade.
FAUR, Mirella.
- Círculos Sagrados para Mulheres Contemporâneas. p. 16. Editora Pensamento/SP. 2015; Teia Cósmica: “Na sua extensa e variada tessitura, tudo está interligado e é interdependente, pois aquilo que afeta um dos fios se repercute vibratoriamente em toda a teia cósmica”. p.24; “Somos um Círculo...” p. 19;
- O Anuário da Grande Mãe. p. 12.
Pegadores de Desmintiduras – cuidador de contusões e alinha ossos deslocados.
Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS - aprovada em 2005, na 162o reunião ordinária do Conselho Nacional de Saúde, portaria n. 971, de 03 de maio de 2006. Com avanços até 2018.
Quintais Urbanos - Publicação no site www.amazoniareal.com.br.
TEIA - Célula de Educação Popular e Saúde. Parintins/AM. Nascera em 2014. Inspira-se na simbologia da Aranha. Articula-se na troca de experiências agroecológicas, saberes popular/tradicionais e economia solidária envolvendo mulheres, artesãos, viveiristas, curadores populares, Educadores Populares, comunicadores, ambientalistas e universitários. Desenvolve também ações nos quintais urbanos cujos proprietários rememoram relações ancestrais de cuidados com a Mãe Terra. Somos um Círculo...
Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Licenciada em Letras pela UERJ (Projeto Rondon/1998). Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.