Copos e Ovos – Toadas de Dominação

Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga, porque, histórico, vivo a História como tempo de possibilidade não de determinação. (Paulo Freire, Pedagogia da Indignação. p. 78)

Copos e Ovos – Toadas de Dominação O uso dos poderes ditos públicos mata leituras críticas sociais, veta o exercício da liberdade e autonomia... Fotos: Divulgação Notícia do dia 24/04/2025

As contribuições do Educador Paulo Freire sempre chegam como tônicos interventivos a despertares de consciências submissas ao determinismo sistêmico. Somente quando a consciência rompe com o determinado, com o aparentemente normal, natural, segundo o Educador, flui “a briga pela recusa, que se funda numa justa raiva e na ação político-ética eficaz”.

 

Situações referentes à saúde primária, secundária e integral experienciadas na cotidianidade da população instigam nosso ativismo radicalizar e problematizar o caos; até mesmo verbostejar sobre uma realidade massacrada e mascarada por festivais, por ritos religiosistas em total contradição aos originais anúncios de Jesus de Nazaré referentes à prática da Justiça Popular.

 

A indignação em pauta não é recente: enquanto estados, municípios e respectivas administrações usam recursos públicos essenciais à qualidade de vida da população em luxúrias, ôba-ôbas, foguetórios e alienações variadas, atenções fundamentais à saúde pública são ignoradas, abafadas sob conivência de poderes instalados e mídias subservientes.

 

Apelos diários por atendimentos especializados e acolhedores não cessam, assim como as súplicas nas redes sociais de públicos diversos incluindo trabalhadores e trabalhadoras da saúde; no auge do desespero, esses públicos transformam-se em pedintes, quando a atenção secundária e/ou emergencial ignora as recorrências aos cuidados assegurados no TFD (Tratamento Fora de Domicílio), regido na Portaria no 055/99, de 25 de fevereiro de 1999, da SAS/MS.

 

Nossa indignação em forma de denúncia se fundamenta num dos últimos apelos de Denizete Rodrigues, Agente Comunitária de Saúde, do Município de Parintins/AM: “Estou a um longo período de luta contra um câncer. Já fiz duas cirurgias e agora estou no processo de tratamento da radioterapia e da quimioterapia, porém, a Cisplatina está em falta há um ano na FCECON, e preciso aproximadamente de 15 mil reais para custear meu tratamento da quimioterapia. Peço e conto com a ajuda de vocês, meus amigos, para vencer mais essa batalha; doem quanto puderem. Serei eternamente grata!”

 

A Trabalhadora da Saúde citada é apenas um caso entre centenas de tantos outros banalizados, omitidos nos serviços públicos de saúde em total desatenção ao que dispõe o Tratamento Fora de Domicílio; sem contar as condições de traslado à capital, considerando-se a classe social dos pacientes.

 

Na contramão da desatenção, do desrespeito político ao “direito de Todxs e dever do Estado” a uma Vida com Dignidade, o apelo de Denizete Rodrigues testemunha nossa denúncia, a “justa raiva” que nos instiga radicalizar a dita cidadania: o Governo do Amazonas e Companhia de Saneamento do Amazonas (Cosama) anunciaram no último 11 de abril, durante o lançamento oficial do 58o Festival Folclórico do Município de Parintins (369 km de Manaus) investimentos correspondentes a “600 mil copos temáticos sendo 130 mil destinados a cada bumbá – Caprichoso e Garantido”. Segundo nota publicada nos sites de notícias e redes sociais, sem quaisquer questionamentos de quem de dever e direito, os recursos provêm do Governo do Amazonas e COSAMA ambos sustentados com impostos e taxas arrancados da população com ou sem renda.

 

Além dos “600 mil copos temáticos”, a Gestão Pública de Parintins reforça a toada com 6.500 bombas fantasiadas de ovos de páscoa, “em grande festa na Arena Olímpica”, Rubem dos Santos, conforme discurso oficial: “Celebrando hoje com nossas crianças a renovação da fé com Cristo e dias melhores em Parintins, que enche nossos corações de esperança e alegria”.

 

Consciências despertas problematizam: houve consulta pública e/ou fiscalização dos recursos usados em nome de Cristo? Igrejas e Serviços de Saúde questionaram possíveis afetações à saúde alimentar das crianças (a maioria vulnerabilizada), quando a população não dispõe de qualidade de vida digna, de uma justa atenção básica e respectivas urgências e emergências?

 

Que diria Cristo sobre a “renovação da fé” via distribuição de 6.500 ovos produzidos a base de açúcares e de outros ingredientes comprovadamente nocivos à saúde?

 

Os níveis de alienação impostos às massas, o uso dos poderes ditos públicos por nulidades viciadas mata leituras críticas sociais, veta o exercício da liberdade e autonomia, cega percepções sobre realidades abusivas em que desvalidos são submetidos a podres poderes e ao mesmo tempo condenados às mais variadas mazelas; em paralelo o uso indevido de princípios cristãos no acobertamento a corrupções institucionalizadas.

 

Enquanto esmola for concebida como caridade e desvalidos mendigarem direitos fundamentais, vendilhões dominarão consciências, espaços de poder, arenas, templos... E as atenções à digna e justa qualidade de vida, segundo Marx, “terão preço de mercado: tempo da corrupção geral, da venalidade universal.”

 

Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Licenciada em Letras pela UERJ (Projeto Rondon/1998). Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.